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Livro "Curva de Rio (Prosa & Poesia - Org. Reynaldo Damazio)" 2017 - Contos de Bruna Meneguetti


A seguir você pode ler dois contos meus que foram publicados no livro "Curva de Rio (Prosa & Poesia - Org. Reynaldo Damazio)", Editora Giostri, 2017.


Tinha certeza de que seus olhos eram verdes


Verdes como esmeralda, como um mar calmo num dia de sol, como a grama bem molhada. Agora eu os vejo castanhos e fico em pânico. Como posso ter me enganado tanto? Mal a conheço e acabo de descobrir que a conheço pior do que imaginava. Mas a gente se engana com as coisas invisíveis e não com as visíveis. A menos que se esteja cego nos sentidos, e eu estava cega todos esses dias quando a vi com seus olhos verdes que não estão mais aí. O mais curioso é que sempre os achei lindos! Pensava: que lindos olhos verdes aquela moça tem. Fiquei refletindo como eu fui ver olhos verdes no lugar dos seus. Se os olhos são mesmo janelas, é como se eu visse a sacada de um apartamento onde, na verdade, é um vitral de uma casa.

Por que verdes? Me diga qual é essa camada estranha que nos impede de perceber os outros, sentir suas dores, seus amores, entender que é gente como a gente, não importa se são olhos de esmeralda ou chocolate. Você e esse verde que agora procuro insistentemente, como se estivesse mentindo para mim, e justo agora que estamos frente a frente! Como pôde fazer isso para me presentear com esses novos olhos? Não me sinto digna do castanho deles. Cultuei o verde como se ele fosse algo irrefutável. Fiz um altar, o cumprimentei, percebi sua presença antes de você chegar. O verde acenou para mim. Mas agora o castanho me chama à realidade. Seu rosto muda. É como se a minha máscara caísse ao perceber que o verde não está aí, que ele não vai voltar. Que o verde que vi é outra coisa.

Seu verde me lembra ausência e ele é a materialização da própria. Seu verde é despedida, é choro e também saudades. Seu verde é amor, seu verde é intocável. Quero conhecer a verdade por trás do verde que nunca existiu. Quero que me conte quem é e porque escolheu mentir sobre o verde. Quero que me diga porque acha que o verde a escolheu. Eu não sei nada sobre você, apenas que tinha um verde que a seguia e que, um belo dia, parou. Eu também tinha olhos verdes que me seguiam, sabe? Seu verde é o mesmo que amei. Que aconteceu? Não sei bem, mas me lembram seus olhos. Eram verdes até que simplesmente deixaram de ser. O que eu via, então, era apenas o reflexo dos meus.

O que me diz? Seus olhos são mesmo verdes! Ah, é a luz... Ah, é a sala e as paredes... Ah, é que vai chover e eles ficam mais cheios de barro... Há um minuto eu poderia jurar que eram castanhos. Como pode existir tanto verde no seu castanho, tanto castanho no seu verde? Já lhe disseram que seus olhos são lindos? Nunca vi nenhum mudar de cor assim. E, se quer saber, não importa. É mesmo bom pensar que seu verde e o meu estão por aí escondidos, esperando o melhor momento para voltar e dizer que, na verdade, esse tempo todo estavam juntos e em todos os lugares, com todos os verdes que andam sumindo por aí. Se quer saber, acho que um dia o verde vai deixar de ser ausência para se transformar em preenchimento. E vamos celebrar o verde de novo. Eu e você.


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Na terra dos cardumes


O farol abre e a onda selvagem de pessoas na calçada dos números pares da Avenida Paulista vai me mastigando e ruminando enquanto ando. É tanta gente lá pela hora do almoço, perto do prédio da Gazeta, que não se sabe mais distinguir entre os pensamentos dos outros e os próprios. Somos tantos dando passos juntos, tropeçando nos mesmos degraus, invadindo os mesmos faróis, que acabamos trombando também mais em nós mesmos, caindo nas próprias histórias, sendo engolidos pelos medos. Não dá para sair nadando rápido, de modo que apenas enfrentamos a massa furiosa em busca do almoço, da casa, da água livre. Se debatem como peixes subindo o rio. Mas, quando nada do lado contrário, você acaba correndo o risco de te repararem.

Talvez seja por isso que todos os dias o homem dança na mesma calçada, sempre encarando os cardumes. No entanto, enquanto me debato, ele reina em um círculo próprio no asfalto da urbe. Seu espaço é demarcado pela massa que me engole e desvia dele como se fosse um ser vivo inteligente. Ele, por outro lado, conhece bem aquele habitat natural. Ao som da música, dá passos imprecisos para todos os lados, bate suas castanholas e vibra o corpo inteirinho como uma serpente desajeitada que nunca dá o bote final.

Ele é todo colorido e na natureza sabemos bem que esses seres são os mais venenosos, mesmo que ataquem apenas para se proteger de predadores mais vorazes, como eu e você. Prova disso é o meu primeiro pensamento: "aquele pobre diabo, que nasceu sem talento e fica se esforçando. Aquele ser com parafuso solto, que ninguém conseguiu apertar, e que fica nadando contra os cardumes".

Só então percebo que eu e ele somos os únicos com os corpos apontados na mesma direção. Eu, lutando. Ele dança, porque o círculo é seu ringue. Vou nadando naquele rio de concreto, presa entre os peixes. Ele é todo corpo se expressando, deixando as mãos indo e vindo na terra dos cardumes. Uma menina, desses peixes bem arrumadinhos, dá umas moedas.

“Por que precisa ser bom?”, me pergunto. Por que o artista não pode ser fogo na água de pedra? Dançar com suas castanholas estranhas, criando a própria música. O círculo do lado que se queira estar. Munir-se de cor contra os outros. Ele me picou. E me picou porque eu o ataquei. Fico alucinando na lucidez entre os cardumes. Quero estender o braço para que o homem dançando me puxe. Mas, diferente de mim, ele olha sem pena. E me pica de novo, porque aquele é o círculo dele. Eu que tenha a coragem de fazer o meu próprio, se sou tão artista quanto digo ser. E mais uma picada para que eu olhe ao que dizem ser loucura e a oferte, reconhecendo o bem valioso que é ter parafuso solto na terra dos cardumes.

Viver arrastada assim não dá. Tentar passar os dias no meio dos peixes porque lá é que se esconde melhor. Destoar, porque não se aguenta, e virar dentro da corrente a todo o momento para buscar o que não quer esconder. Ignorar a própria natureza selvagem porque é confortável ser cardume, até que não é mais. Dizer a todo o momento que vai sair do cardume e ter medo de não ser suficiente ao dançar no próprio ringue.

Ter pena de quem tem pena de você, porque você faz parte de um cardume infeliz, o que é pior do que só ser peixe. Ter a coragem de dançar a caminho das críticas e do ridículo sem esperar o contrário, mas dançar porque a dança te alimenta. Dançar na Paulista porque qualquer lugar é o seu palco. Dançar até não poder mais pela satisfação de ser peixe. Dançar pela vida e não pelo aplauso. Dançar até criar círculos, até a massa desviar, até a perna bambear e o fôlego acabar. Ser finalmente peixe na terra dos cardumes sem jamais se contentar, sem deixar de ser fogo em água de pedra, sem esquecer que peixe sempre corre o perigo de voltar a fazer parte do cardume.


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